Por Douglas Reis
Eu sempre acompanho as estatísticas das visitas aqui do blog pelo Google Analytics e as postagens que ganham disparadas em visitas são sempre as que têm "Desenhos Realistas" no meio do título ou no corpo do texto. E não são desenhos realistas no sentido de criar a partir de conhecimentos sobre o desenho acadêmico, são desenhos feitos como reprodução de imagens. Já vou deixar bem claro desde o início do post que não estou diminuindo a importância ou a habilidade de um artista que trabalha dessa forma, o que pretendo é levantar alguns questionamentos. Pensei com meus botões: por que temos essa obsessão tão grande com a perfeita representação do mundo à nossa volta? Por que permanecer preso à nossa suposta realidade quando temos a possibilidade de ultrapassar essa barreira e fazer o que nossa mente criativa nos diz, muitas vezes até mesmo intensificando o poder expressivo de um trabalho?
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Meus antigos desenhos onde o que mais importava pra mim era conseguir fazer as reproduções mais perfeitas possível. No máximo eu fazia algum adereço diferente, ou fazia brincadeiras com o fundo ou com o nome do artista. Hum, todos os homens que desenhei ou mostram apenas o rosto ou aparecem devidamente vestidos. Bem observado meu caro Watson, isso deve significar alguma coisa...
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Daí meus botões resolveram falar comigo de volta e começamos um diálogo deveras produtivo. Uma das coisas que passou pela minha massa cinzenta foi que esse gosto tão forte pelo realismo parece atacar de uma forma mais intensa quando se está começando a ilustrar, ou melhor, a desenhar. Faço essa distinção por que ilustrar e desenhar são coisas diferentes, embora sejam igualmente formas de expressão artística visual. A ilustração necessariamente possui uma função, ela é criada para comunicar e facilitar a compreensão de algo, seja uma ideia ou um conceito, através da linguagem visual, independente do mercado na qual será utilizada (editorial, publicitário, games, cinema, animação...). O desenho em si não depende de um cliente determinado e nem sempre está preocupado com a objetividade de comunicar alguma coisa. Pode ser que o sujeito só queira rabiscar descompromissadamente. Toda ilustração pode ser considerada um desenho no sentido mais amplo do termo, mas nem todo desenho pode ser considerado uma ilustração. Feita essa distinção, me parece que o desejo de ter o "poder" de representar o mundo real é o santo graal de quem está começando no desenho. Até mesmo a familiaridade com nossa própria imagem e com nossa própria espécie ajuda a intensificar esse interesse. Foi assim comigo e acredito que aconteça com muita gente. Eu adorava pegar aquelas fotos, me debruçar sobre o papel com lápis de trocentas graduações diferentes e passar horas e horas observando e reproduzindo a imagem, tentando captar seus mínimos detalhes. Claro que o artista que segue essa linha de trabalho produz obras maravilhosas. Gombrich em seu famoso livro A História da Arte faz um belo comentário sobre esse gosto de muitos pelo realismo:
Querem admirar a perícia do artista em representar as coisas tal como elas as vêem. Gostam mais das pinturas que "parecem reais". Não nego, é claro, que essa é uma consideração importante. A paciência e a habilidade que contribuem para a reprodução fiel do mundo visível são, por certo, dignas de admiração. Grandes artistas do passado dedicaram muito trabalho à execução de pinturas em que todos os pormenores, mesmo os minúsculos, estão meticulosamente registrados. (p. 24)
Concordo plenamente, mas há outro ponto a ser levantado e é um questionamento feito pelo próprio autor: um desenho é menos perfeito por que possui menos detalhes? Ou por apresentar alguma distorção? Muito pode ser feito nesse sentido a fim de se alcançar uma maior força expressiva no desenho. Acho brilhante, logo em seguida, quando Gombrich fala sobre essas distorções e faz uma analogia com os filmes animados da Disney e com as HQs:
[...] às vezes é certo desenhar coisas de um modo diferente do que elas se apresentam aos nossos olhos, modificá-las ou distorcê-las num ou noutro sentido. O camundongo Mickey não se parece muito com um camundongo verdadeiro. No entanto, as pessoas não escrevem cartas indignadas aos jornais criticando o comprimento da cauda de Mickey. Os que penetram no mundo encantado de Disney não estão preocupados com a Arte com A maiúsculo. Não assistem a seus filmes armados dos mesmos preconceitos com que visitam uma exposição de pintura moderna. Mas se um artista moderno desenha alguma coisa à sua maneira, está sujeito a que o considerem um trapalhão, incapaz de fazer coisa melhor. (p.25)
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Na esquerda: Gunnm, mangá de Yukito Kishiro e A Piada Mortal ilustrada por Brian Bolland. No primeiro exemplo, as linhas cinéticas deformam e intensificam os movimentos e no segundo as expressões do Coringa são propositalmente exageradas para captarmos sua personalidade insana. Na direita Meu Malvado Favorito e A Noiva Cadáver. Na animação é muito comum o uso de figuras caricatas. E tanto nos movimentos quanto nas expressões há a distorção com a finalidade de tornar ainda mais expressivas as atitudes dos personagens.
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Esse exercício de se despir de preconceitos pode acabar se revelando muito produtivo e vai abrir os olhos para novas formas de expressão. Que tal usar o conhecimento técnico sobre desenho acadêmico para criar os próprios trabalhos sem se apegar à fiel reprodução de uma imagem, de uma cena? Eu pessoalmente não me vejo mais fazendo retratos realistas da forma como eu fazia há 6, 7 anos atrás. Alguém pode me compreender mal nesse ponto: obviamente não estou dizendo com isso que acho uma perda de tempo estudar todas as técnicas tradicionais de desenho, muito pelo contrário, é de VITAL IMPORTÂNCIA ter um bom conhecimento de anatomia, perspectiva, luz e sombra, teoria das cores, composição... Eu não negaria isso nem que tivesse perdido completamente minha sanidade. Minhas ponderações são mais um convite a explorar outros caminhos dentro das possibilidades que esse estudo permite. Hoje a reprodução nos menores detalhes somente não me satisfaz mais. De certa forma ela te priva da liberdade de fazer experimentações, priva o artista - ou aspirante - a pegar outras estradas em seu amadurecimento. E se o sujeito quer se enveredar pelo mundo da ilustração, fazer reproduções maravilhosas do mundo à nossa volta e ser um mestre nas técnicas que utiliza pode não ser o suficiente. Não se esse mesmo sujeito não tiver a capacidade de lidar com conceitos e representar ideias. Lembra que lá no começo fiz uma tentativa sutil de mostrar a diferença entre desenho e ilustração? Então. É ai que acredito existir um pequeno risco, que é o do desenhista/artista acabar se deixando levar pelas técnicas somente e deixar o conceito e a ideia de lado. E para onde vai o poder de abstrair, de subverter a ordem das coisas, de transformar o natural, o "real" em outro produto, em algo diferente?
Eu não sei quanto a você caro leitor, mas na minha opinião a melhor parte do estudo acadêmico é a posterior, aquele momento em que deixamos nossa mente livre para gerar imagens sem se apegar às coisas como elas são à nossa volta. Imagino que o caminho mais interessante, como não poderia deixar de ser, é o mastigado equilíbrio. Por que dependendo do estilo no qual se trabalhe, uma carga maior ou menor de realismo vai ser exigida e o profissional terá que mesclar sua capacidade de lidar com conceitos com seu apuro técnico. Há mercado para todos os tipos de traços, pois o mundo da comunicação não vai jamais se limitar somente a um dialeto da linguagem visual. Então vamos tentar nos livrar dessas amarras e explorar novas formas de se expressar, tenho certeza que coisas muito boas podem surgir dessa experiência.
Bons rabiscos a todos! :)
Bibliografia consultada:
ANTUNES, Ricardo e outros autores.
Guia do ilustrador. 2007. Disponível em:
http://www.guiadoilustrador.com.br/
GOMBRICH, E. H. (Ernest Hans).
A História da Arte. 16. Ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.